A Felicidade Não É Deste Mundo
A Felicidade Não É Deste Mundo: Reflexões à Luz da Doutrina Espírita
A busca pela felicidade é, sem dúvida, uma constante na experiência humana. Em cada época da história, em cada sociedade, o homem se vê impulsionado pelo desejo de encontrar o bem-estar, o contentamento e a plenitude. E, no entanto, essa mesma humanidade, desde os tempos mais remotos, proclama sua insatisfação diante da vida material. Essa dualidade entre o anseio por ser feliz e a realidade de dores e decepções é abordada com profundidade no capítulo V de O Evangelho Segundo o Espiritismo, no item 20, intitulado “A felicidade não é deste mundo”, ditado pelo Espírito François-Nicolas-Madeleine, cardeal Morlot.
Essa mensagem, de notável clareza e profundidade, oferece ao espírita sincero e ao buscador da verdade espiritual uma chave interpretativa poderosa para compreender o papel da Terra como morada de expiação e prova, bem como os fundamentos da verdadeira felicidade que transcende o plano material. Neste artigo, propomo-nos a estudar de forma minuciosa e reflexiva o conteúdo desse trecho, relacionando-o aos princípios fundamentais da Doutrina Espírita e aos desafios que o espírito encarnado enfrenta em sua trajetória evolutiva.
A queixa universal da infelicidade
O Espírito comunicante inicia sua mensagem com uma constatação que atravessa os séculos: a reclamação generalizada de que a felicidade parece não ser feita para o homem. Independentemente da posição social, do status econômico ou da fase da vida, todos, em algum momento, sentem o peso da dor, da insatisfação, da frustração. A exclamação “Não sou feliz!” é um eco que se ouve nas mais diversas camadas sociais, provando a veracidade da sentença extraída do Eclesiastes: “A felicidade não é deste mundo.”
Trata-se de um ponto crucial. Muitas vezes, o homem acredita que a infelicidade é fruto da ausência de determinados fatores — dinheiro, juventude, beleza, influência — e se entrega à ilusão de que, ao conquistar tais bens, será feliz. No entanto, mesmo os que aparentemente reúnem todas essas condições vivem queixando-se da vida. A Doutrina Espírita, ao lançar luz sobre essa questão, revela que a raiz da infelicidade não está nas condições externas, mas na própria estrutura da experiência terrena, que se destina ao aprendizado, ao resgate e à evolução moral.
As falsas promessas do mundo material
O Espírito enfatiza que nem mesmo a combinação da riqueza, do poder e da juventude assegura a felicidade. Ao contrário do que comumente se pensa, esses bens materiais, longe de garantirem a paz íntima, frequentemente contribuem para o agravamento das angústias. Isso porque os desejos humanos são insaciáveis enquanto baseados apenas no ego e na satisfação sensorial. O Espírito esclarece que “incessantemente se ouvem, no seio das classes mais privilegiadas, pessoas de todas as idades se queixarem amargamente da situação em que se encontram.”
Essa constatação é importante porque desmantela o mito do “paraíso terreno”. A Doutrina Espírita não condena a posse dos bens materiais, mas alerta para a ilusão de que eles sejam fins em si mesmos. O verdadeiro propósito da existência corporal é a prova e a expiação, e os bens terrenos são instrumentos que, bem ou mal utilizados, contribuem para a educação do Espírito. O abuso das riquezas, o uso do poder para interesses egoísticos, ou a juventude desperdiçada em prazeres fúteis conduzem invariavelmente à frustração, ao vazio e à dor.
A Terra como mundo de provas e expiações
O Espírito Morlot é enfático: “a Terra é lugar de provas e de expiações.” Essa afirmativa resume de forma contundente a natureza espiritual do nosso planeta. Kardec, ao codificar o Espiritismo, classificou os mundos habitados em categorias, conforme o grau de adiantamento moral e intelectual de seus habitantes. A Terra, segundo essa classificação, está ainda no estágio de provas e expiações, ou seja, um mundo onde os Espíritos reencarnam com o objetivo de:
- Provar a si mesmos sua fidelidade ao bem;
- Expurgar, por meio da dor, as consequências de faltas pretéritas;
- Aprender, em meio às lutas, os valores da humildade, da resignação, da caridade e do amor.
Assim, não é de se estranhar que, mesmo entre os mais abastados, o sofrimento esteja presente. A justiça divina se manifesta com sabedoria, permitindo que cada Espírito atravesse as experiências necessárias à sua purificação. Aqueles que hoje detêm o poder e a riqueza, muitas vezes são os mesmos que em vidas anteriores sofreram privações, ou que utilizaram mal as mesmas condições e agora retornam com a oportunidade de reparar.
O erro da visão materialista da vida
Na sequência de sua instrução, o Espírito denuncia um equívoco perigoso: a ideia de que a Terra é a única morada do homem e que, nela, em uma só existência, o ser humano deve alcançar o máximo de felicidade possível. Esta crença, segundo ele, “ilude-se e engana os que os escutam”, pois ignora o conhecimento milenar de que este mundo jamais proporcionou felicidade plena, exceto em raríssimas e transitórias ocasiões.
A Doutrina Espírita, ao reintroduzir a verdade da pluralidade das existências e da pluralidade dos mundos habitados, devolve ao homem a noção de esperança racional. Sabemos que esta existência é apenas uma entre tantas, e que o Espírito caminha, de encarnação em encarnação, aperfeiçoando-se, até alcançar esferas mais elevadas, onde a felicidade é mais pura e constante.
Essa compreensão muda radicalmente a forma como o sofrimento é percebido. Em vez de ser um castigo cruel e sem sentido, o sofrimento passa a ser compreendido como instrumento pedagógico divino, que orienta, ajusta e transforma o Espírito rebelde em servidor fiel da Lei de Deus.
A felicidade terrena: uma utopia fugaz
O Espírito então afirma que “a felicidade é uma utopia a cuja conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem alcançá-la.” Essa frase é de enorme importância. Revela que a felicidade, tal como o mundo a concebe — feita de prazeres, poder e sucesso — não é apenas inalcançável, mas também ilusória e traiçoeira. Aqueles que se iludem por ela acabam colhendo mais decepções do que alegrias duradouras.
Isso não significa que não haja momentos felizes na Terra, ou que a vida aqui seja apenas tormento. Há, sim, instantes de felicidade sincera — no amor verdadeiro, na amizade leal, na prática do bem, na contemplação da natureza, na prece confiante. No entanto, todos esses momentos são instantes, não um estado contínuo. São lampejos da felicidade verdadeira que aguarda o Espírito nas esferas superiores.
Mesmo os mais “venturosos da Terra”, como diz o Espírito, vivem sob a sombra da dor e da incerteza. Um mês de alegria pode ser seguido por anos de luta. Um instante de prazer pode desencadear longas provações. Eis a fragilidade da dita felicidade terrena.
A promessa de mundos superiores
Contudo, a mensagem não termina em pessimismo. Ao contrário, há nela uma esperança sublime. O Espírito nos diz que “forçoso é se admita que, algures, moradas há mais favorecidas”, onde o Espírito, mesmo encarnado, pode experimentar gozos mais puros e permanentes.
Essa afirmação está em total sintonia com os ensinamentos espíritas sobre os mundos habitados. Deus, em sua infinita bondade, não criou o homem para o sofrimento eterno. Ao contrário, o sofrimento é temporário e educativo. Ao atingir determinado grau de depuração moral, o Espírito se torna apto a habitar mundos mais adiantados, como os chamados mundos de regeneração, os mundos felizes e os mundos celestes.
Essa transição se dá de forma natural, conforme a Lei de Progresso, que rege todo o universo. A mensagem é clara: nosso destino é a felicidade, mas não neste mundo ainda imperfeito. Ela está nos esperando, e cada esforço que empreendemos no bem, cada prova suportada com paciência, cada ato de amor e de caridade são degraus que nos aproximam dela.
Os Espíritos de ordem elevada: mensageiros da paz interior
Ainda dentro de sua instrução, o Espírito comunicante afirma que, embora não exista felicidade completa na Terra, há Espíritos que, mesmo reencarnados aqui, conseguem desfrutar de serenidade e equilíbrio, características da verdadeira paz interior. Ele refere-se a “Espíritos elevados, encarnados em missão”, que vivem “contentes numa posição modesta”, contentamento esse que nasce da pureza da consciência e da fé no futuro.
Esse trecho é fundamental para compreendermos a distinção entre o prazer efêmero e a alegria duradoura do espírito resignado, que compreende o valor das provações. A felicidade possível na Terra não está nos triunfos exteriores, mas no silêncio da alma pacificada, que aprendeu a amar, a servir e a confiar na soberana justiça divina.
Esses missionários do bem, que muitas vezes passam despercebidos pelos olhos do mundo, são os exemplos vivos da verdadeira felicidade possível ao Espírito encarnado: desapegado dos bens, resignado nas dores, sereno nas adversidades, caridoso no trato com os semelhantes, e profundamente ligado a Deus pela oração e pela consciência desperta.
A lição que eles nos oferecem é clara: é possível, sim, experimentar a felicidade relativa na Terra — mas ela será sempre proporcional à nossa elevação moral. Ou seja, quanto mais desprendidos do egoísmo, do orgulho e dos desejos materiais formos, mais experimentaremos a paz do dever cumprido, a doçura do amor desinteressado, e a alegria serena do espírito em comunhão com as Leis Divinas.
A diferença entre felicidade e prazer
É importante aqui traçar uma distinção doutrinária essencial entre prazer e felicidade. O prazer é uma sensação corporal, que está sujeita ao tempo, às circunstâncias e à condição física e emocional. Pode ser provocado por um alimento, por um elogio, por uma conquista. Já a felicidade, do ponto de vista espírita, é um estado de alma, que depende do grau de sintonia do Espírito com as Leis Morais do Criador.
O prazer pode ser comprado, estimulado, imitado. A felicidade verdadeira não se compra, não se finge, não se herda — conquista-se. É fruto da harmonia interior que nasce da consciência tranquila, do dever bem cumprido, do amor que se oferece sem esperar retorno, da fé que sustenta diante das tempestades da vida.
É exatamente por isso que muitos ricos se mostram profundamente infelizes e muitos pobres se revelam serenos. Porque a felicidade, como nos ensina o Espírito Morlot, “não está nos bens exteriores, mas no modo como o Espírito os utiliza e os encara.”
O papel da resignação e da fé
Outro aspecto fundamental da mensagem é a ênfase na resignação e na fé no futuro como elementos constituintes da felicidade possível neste mundo. A resignação, como virtude cristã, não significa passividade diante das injustiças, mas aceitação consciente das provas que nos são necessárias, com confiança na providência divina.
A fé, por sua vez, é o que nos sustenta quando a dor parece insuportável e a razão humana não consegue encontrar explicações imediatas. Quando cultivada à luz da Doutrina Espírita, a fé deixa de ser um sentimento cego ou supersticioso e passa a ser “a fé raciocinada” que compreende os porquês da dor, o valor das provas, e o destino grandioso que aguarda o Espírito perseverante.
Essa fé sustenta os mártires, consola os corações feridos, impulsiona o trabalho silencioso dos servidores do bem, e fortalece o médium sincero em sua caminhada de renúncia e serviço. E é justamente a presença dessa fé, aliada à resignação diante da vontade divina, que torna possível o surgimento da paz verdadeira em meio ao sofrimento.
A dor como bênção disfarçada
Sob a ótica materialista, o sofrimento parece um mal injusto. Mas o Espiritismo, iluminando com a luz da razão e da fé os caminhos da alma, ensina que toda dor tem uma função educativa ou reparadora. Quando compreendida e aceita com humildade, a dor se transforma em instrumento de regeneração e ascensão.
É por isso que muitos Espíritos superiores olham com serenidade as próprias dores, e até agradecem por elas, pois sabem que cada lágrima pode ser um degrau na escada evolutiva. Não são poucos os casos de Espíritos que, ao retornarem ao plano espiritual, declaram que os momentos de maior sofrimento foram os que mais contribuíram para sua transformação interior.
A felicidade que nos espera não é isenta de méritos: é conquista, e não concessão gratuita. E cada sofrimento bem suportado, cada tentação vencida, cada prova superada com dignidade e fé, são títulos que nos qualificam para essa ventura futura.
Conclusão: a verdadeira felicidade começa na alma
A mensagem do Espírito François-Nicolas-Madeleine, cardeal Morlot, contida no item 20 do capítulo V de O Evangelho Segundo o Espiritismo, é uma das mais profundas e consoladoras da codificação. Ao afirmar que “a felicidade não é deste mundo”, ele não prega o pessimismo, mas sim a libertação das ilusões que escravizam o homem à matéria.
Mostra-nos que a verdadeira felicidade não está no que possuímos, mas no que somos; não no que o mundo nos dá, mas naquilo que, em espírito, cultivamos em nós: paz, resignação, fé, amor e esperança.
O Espiritismo não nega a dor, mas lhe dá sentido. Não nos promete um mundo sem dificuldades, mas nos oferece os recursos para enfrentá-las com coragem, compreensão e luz. E nos assegura, com base na justiça e na misericórdia divina, que a felicidade completa nos aguarda, quando tivermos aprendido a amar sem condições e a servir sem esperar.
Enquanto isso, sigamos confiantes, certos de que mesmo em meio às tribulações, pode-se vislumbrar a felicidade — não como estado exterior, mas como conquista da alma.
Que possamos, ao final da nossa jornada, olhar para trás não com revolta ou arrependimento, mas com gratidão pelas lições recebidas. E ao cruzar os umbrais do mundo espiritual, sermos acolhidos com a doce certeza de que a felicidade, enfim, já começa a se delinear no horizonte da imortalidade.