Compreensão da Lei de Deus Antes da Encarnação
Compreensão da Lei de Deus Antes da Encarnação: O que nos diz o Espiritismo?

Entre as perguntas de O Livro dos Espíritos, poucas são tão instigantes quanto a de número 620: “Antes de se unir ao corpo, a alma compreende melhor a lei de Deus do que depois de encarnada?” A resposta dada pelos Espíritos Superiores é breve, mas abre um campo vastíssimo para a reflexão: “Compreende-a de acordo com o grau de perfeição que tenha atingido e dela guarda a intuição quando unida ao corpo. Os maus instintos, porém, fazem ordinariamente que o homem a esqueça.” Esse texto, curto e direto, toca em pontos fundamentais da filosofia espírita: a evolução do Espírito, a conservação da intuição moral, a influência da carne e a luta contra os instintos inferiores.
Para enriquecer a compreensão, recorremos ao comentário do Espírito Miramez na obra Filosofia Espírita, através da psicografia de João Nunes Maia. Ali encontramos uma explanação mais ampla, que nos permite perceber não apenas a resposta objetiva, mas também as suas consequências éticas, pedagógicas e espirituais. Miramez fala sobre a lucidez da alma antes da encarnação, sobre os limites impostos pela carne, sobre a função da consciência, sobre a importância da razão e sobre o papel das provas e expiações no progresso do Espírito. Ele nos conduz a perceber que a pergunta de Kardec não é apenas uma especulação teórica, mas um convite à autotransformação e ao cultivo da ligação com Deus em qualquer estado em que nos encontremos.
A lucidez da alma antes da encarnação
Miramez inicia seu comentário destacando que, de fato, antes da união com o corpo, a alma possui maior lucidez para compreender as leis naturais. Isso ocorre porque ela não está submetida às necessidades fisiológicas, às pressões do meio e às distrações próprias da vida material. Livre da “veste mais grosseira” que é o corpo, o Espírito pode perceber com maior clareza a ordem divina que sustenta a vida. Essa observação, entretanto, precisa ser qualificada: não se trata de uma regra absoluta que iguala todos os Espíritos desencarnados, mas de uma tendência geral.
Há Espíritos desencarnados que ainda permanecem em estados de confusão, ilusão e ignorância, sem lucidez sobre as leis divinas. Da mesma forma, há encarnados que, apesar das limitações impostas pela carne, conseguem compreender e viver com profundidade os princípios de Deus. Isso significa que o fator determinante não é apenas a condição de estar ou não no corpo, mas, sobretudo, o grau de evolução espiritual atingido pela alma. A pergunta de Kardec e a resposta dos Espíritos deixam claro esse ponto: o entendimento da lei divina está diretamente ligado ao nível de perfeição conquistado.
Portanto, quando falamos em maior lucidez da alma antes da encarnação, estamos nos referindo a uma condição relativa, que favorece o entendimento, mas que não garante a posse plena dele. É como alguém que, sem o peso de um fardo, pode caminhar mais livremente: se já sabe o caminho, seguirá com rapidez; se ainda não sabe, mesmo sem o fardo, poderá perder-se. Assim também é o Espírito: livre da carne, pode perceber melhor as verdades divinas, mas só as reconhece de fato se já tiver alcançado maturidade espiritual.
O esquecimento imposto pela carne e os maus instintos
A resposta dos Espíritos menciona que a alma, unida ao corpo, guarda a intuição da lei divina, mas que os maus instintos a fazem ordinariamente esquecer. Essa é uma das chaves mais importantes da pedagogia espiritual. Ao reencarnar, a alma não perde tudo o que conquistou, não volta ao ponto zero. Ela conserva, em profundidade, o registro das leis de Deus, como se fosse uma marca impressa em sua consciência. No entanto, ao assumir a carne, sofre uma espécie de véu que limita suas recordações, não apenas das vidas passadas, mas também da clareza espiritual que possuía no estado desencarnado.
Esse esquecimento não é um castigo, mas uma medida de misericórdia e de proteção. Muitas recordações, se viessem à tona, poderiam atrapalhar a nova existência, sobrecarregando a alma com culpas ou distraindo-a com lembranças que a desviariam do aprendizado necessário. Além disso, a vida material, com suas exigências, poderia tornar insuportável a convivência com recordações dolorosas. O esquecimento parcial funciona, portanto, como recurso pedagógico que obriga o Espírito a reconstruir, a cada existência, o edifício do bem.
Contudo, esse véu não é total. Como dizem os Espíritos, a alma guarda a intuição. E essa intuição se manifesta na forma de consciência moral. O ser humano pode não se lembrar de detalhes de vidas anteriores ou de lições aprendidas em estado espiritual, mas traz consigo uma sensação íntima do que é certo e do que é errado, do que está em harmonia com a lei divina e do que se afasta dela. Essa voz íntima é a herança espiritual, o eco das conquistas anteriores.
O problema surge quando os maus instintos — que são resquícios de imperfeições e de desequilíbrios ainda presentes no ser — abafam essa intuição. Miramez afirma que o ambiente da Terra é agressivo, e que até determinado ponto de evolução, a violência e a luta fazem parte do caminho. A fusão de forças instintivas e paixões humanas acaba obscurecendo a percepção da lei de Deus. O que era uma lembrança viva antes da encarnação torna-se, muitas vezes, uma lembrança velada, acessível apenas em lampejos ou por meio de esforço moral e espiritual.
Consciência e razão: duas faculdades a serviço da lei
Um ponto particularmente rico do comentário de Miramez é a distinção que ele faz entre consciência e razão. A consciência, diz ele, é como um “computador divino” que registra a lei de Deus em cada alma. Ela acusa depois do erro, apontando ao Espírito que se afastou do caminho. A razão, por sua vez, é a faculdade que analisa antes do ato e permite escolher o caminho correto.
Essa distinção é essencial. Muitas vezes, imaginamos a consciência como uma voz preventiva que nos impede de errar. Miramez esclarece que, na prática, ela se manifesta mais fortemente após a queda, chamando-nos ao arrependimento e à retificação. O papel preventivo cabe à razão, que, iluminada pela intuição da lei, deve avaliar, ponderar e decidir. Quando a razão está esclarecida e em sintonia com a consciência, a vida moral torna-se mais harmoniosa. Mas quando a razão é obscurecida pelo egoísmo ou pelas paixões, a consciência acaba sendo acionada apenas como alerta após a transgressão.
É por isso que Miramez insiste na importância do saber. O conhecimento da lei, estudado e refletido, ajuda a razão a tomar decisões mais corretas, o que, por sua vez, purifica o amor e fortalece a consciência. Saber e amar caminham juntos: o saber ilumina o caminho, o amor dá forças para segui-lo.
A pedagogia das provas e expiações
Outro ponto abordado por Miramez é a finalidade das provações. Muitos Espíritos retornam à Terra por duras provas, expiando faltas anteriores. Essas experiências dolorosas fazem parte do processo de despertamento da alma. A agressividade do ambiente terreno, os conflitos internos e externos, as limitações impostas pela carne — tudo isso funciona como instrumentos educativos, destinados a forjar a consciência e a razão em novos patamares de equilíbrio.
É importante notar que Miramez não fala das provas como castigos arbitrários. Pelo contrário, ele ressalta a bondade infinita de Deus, que utiliza os mesmos instrumentos para embelezar a vida. As leis são constantes, mas cada um as assimila de modo diferente, segundo seu grau de evolução. Assim, o que para um é tormento, para outro é aprendizado; o que para um é violência, para outro é libertação.
Esse processo de expiação e prova não é eterno. Chega um momento em que o Espírito, ao se libertar de certas faltas, não precisa mais passar pelas mesmas agressões exteriores ou conflitos internos. Ele alcança uma paz de consciência que inaugura a verdadeira felicidade. A pedagogia divina não é sádica, mas misericordiosa: corrige quando necessário, mas libera quando a lição é aprendida.
A justiça de Deus e a transformação moral
No final de seu comentário, Miramez faz uma advertência prática: enquanto perseguirmos, seremos perseguidos; enquanto injuriarmos, seremos injuriados; enquanto criticarmos os defeitos alheios, esqueceremos dos nossos próprios e ficaremos presos ao círculo do erro. Ele cita as palavras de Jesus em Mateus, lembrando a necessidade de retirar primeiro a trave de nossos próprios olhos.
Esse trecho nos mostra que a compreensão da lei de Deus não é um exercício teórico, mas uma vivência concreta. A alma pode intuir a lei, mas se não a traduz em atos de justiça, misericórdia e amor, permanece sob o peso dos maus instintos. O conhecimento sem aplicação não basta. É preciso transformar essa intuição em conduta diária, em vigilância sobre pensamentos, palavras e atitudes.
A lei de Deus é eterna, mas os atos humanos são mutáveis. Isso significa que, mesmo quando erramos, podemos corrigir o rumo. A consciência nos acusa, mas a razão pode escolher novos caminhos. A oração nos conecta a Jesus e abre canais para que a intuição da lei se torne mais clara. Cada gesto de transformação pessoal aproxima o Espírito da paz prometida.
A lei de Deus está gravada na alma
A pergunta 620 de O Livro dos Espíritos, com sua resposta breve e o comentário profundo de Miramez, nos revela uma verdade consoladora: a lei de Deus está gravada na alma, e nenhuma encarnação pode apagá-la. Mesmo quando a carne a encobre e os maus instintos tentam abafá-la, a intuição permanece como uma centelha viva, pronta a reacender-se pelo esforço moral, pelo estudo, pela oração e pelo amor.
Antes da encarnação, essa lei é percebida com maior clareza, na medida da evolução do Espírito. Durante a encarnação, ela se torna mais velada, mas nunca desaparece. A consciência e a razão, trabalhando juntas, permitem que o ser humano reencontre esse caminho, mesmo em meio às provas e expiações da vida terrena.
A justiça divina não se apressa, não pune por punir, não condena sem remédio. Ela conduz a alma, passo a passo, até que, liberta dos maus instintos, possa viver em paz e felicidade verdadeira. A cada um de nós cabe a tarefa de transformar a intuição em prática, o saber em amor, a teoria em vida. É nesse esforço diário que se cumpre o objetivo maior: compreender a lei de Deus não apenas antes de encarnar, mas também durante a jornada terrestre, iluminando cada passo com a luz da consciência desperta.