Por que o Espiritismo vem perdendo adeptos?
Por que o Espiritismo vem perdendo adeptos? Um Ensaio

O Espiritismo, nascido no século XIX como proposta de diálogo entre ciência, filosofia e religião, construiu ao longo de mais de um século uma tradição rica em estudos, práticas de caridade e obras que marcaram gerações. No Brasil, essa influência foi especialmente significativa: centros, livros e médiuns tornaram-se referências para milhões. No entanto, as últimas décadas revelam uma inflexão nesse crescimento — um movimento de desaceleração que culminou, no Censo de 2022, em redução do número absoluto de adeptos em relação a 2010.
Compreender as razões dessa queda exige olhar com honestidade e sem romantismos para a realidade: trata-se de um conjunto de fatores internos e externos, culturais e institucionais, comunicacionais e espirituais, que, combinados, explicam por que muitos que poderiam aderir ou permanecer fiéis à doutrina têm buscado outras vias espirituais ou optado por não se filiar a organizações religiosas.
Este texto aproxima-se desse tema com espírito crítico construtivo. É uma tentativa de mapear causas observáveis, analisar como elas atuam em cadeia e, principalmente, apontar caminhos possíveis para a renovação do movimento espírita: uma renovação que preserve os fundamentos doutrinários e, ao mesmo tempo, reforce a capacidade de dialogar com as novas gerações e com os desafios do tempo presente.
Um breve panorama estatístico e sociológico

Os dados censitários mais recentes, comparados aos anteriores, não apenas quantificam a perda, mas também situam o fenômeno em um quadro mais amplo de pluralização religiosa e de crescimento da espiritualidade não institucionalizada. Entre 2000 e 2010 o movimento espírita teve crescimento relevante, mas a década seguinte interrompeu essa trajetória: o número absoluto de adeptos caiu, e a proporção populacional recuou.
Simultaneamente, religiões de matriz africana tiveram crescimento expressivo e o grupo “sem religião” continuou a aumentar. Essas transformações não ocorrem no vácuo — estão inseridas em mudanças sociais profundas: urbanização, individualização das trajetórias espirituais, maior circulação de ideias pela internet, e reivindicações sociais e identitárias que orientam escolhas religiosas.
Mais do que uma simples estatística, os números sinalizam perda de atração e de capacidade de renovação do movimento diante das demandas contemporâneas. O problema não é somente demográfico; é cultural: a capacidade de comunicar a essência espírita, de acolher novos protagonistas e de traduzir práticas para uma experiência que dialogue com o presente tem sido, em muitos locais, insuficiente.
Falta de fluidez nos textos originais: barreiras de linguagem e acesso

As obras clássicas do Espiritismo, escritas na França do século XIX, possuem um estilo e um propósito que foram essenciais à elaboração da doutrina. No entanto, a linguagem rebuscada, a sintaxe longa e a estrutura enciclopédica desses textos constituem hoje uma barreira concreta para muitos jovens e leitores contemporâneos que buscam compreensão imediata e aplicabilidade prática.
A forma utilizada por Allan Kardec e por vários autores do período — marcada por precisão conceitual, exemplos e um forte ancoramento racional — privilegia a construção lógica em detrimento da narração envolvente ou do relato pessoal que captura emoções e identificação.
Quando os textos fundamentais permanecem inacessíveis ao público leigo, cria-se um efeito de exclusão: o recém-chegado encontra um vocabulário técnico, parágrafos extensos e referências históricas que pouco dizem à sua experiência cotidiana.
Sem tradução cultural efetiva — que não significa adulteração do conteúdo, mas sim adaptação didática e contextualização — a doutrina corre o risco de permanecer encerrada em círculos eruditos, sem transbordar para a vida afetiva e prática das novas gerações. Existem iniciativas de atualização e versões mais didáticas, mas, de modo geral, elas ainda não alcançaram a força comunicativa necessária para reverter essa distância.
Atratividade das religiões de matriz africana: experiência, identidade e pertencimento
O crescimento observado da Umbanda e do Candomblé, especialmente entre os jovens, aponta para fatores que os centros espíritas — em geral — não souberam incorporar com a mesma eficácia. Terreiros e casas de culto de matriz africana oferecem práticas sensoriais, rituais corporais, música e participação coletiva que propiciam experiência imediata de transcendência.
Para muitos jovens, sobretudo aqueles que buscam reafirmação de identidade étnica e ligação com ancestralidade, esses ambientes funcionam como espaços de pertencimento e afirmação cultural.
A vivência mediúnica nessas tradições tende a ser integrada desde cedo à vida comunitária: a participação em rituais, a vivência do corpo, a celebração coletiva e a valorização de saberes ancestrais produzem laços emocionais fortes. Em contrapartida, muitos centros espíritas oferecem predominantemente palestras e estudos teóricos, com menos ênfase em vivências compartilhadas.
Além disso, a abertura e a inclusão que caracterizam muitos terreiros — inclusive em relação à comunidade LGBTQIA+ — dialogam diretamente com demandas contemporâneas de acolhimento e reconhecimento. A combinação entre experiência mística imediata, identidade cultural e senso de comunidade é poderosa; se o Espiritismo não oferece alternativas que combinem profundidade doutrinária com experiências de pertencimento, tende a perder terreno.
Palestras redundantes e comunicação desalinhada com as novas gerações
Grande parte da evangelização espírita no Brasil ainda se funda em palestras presenciais e em abordagens que privilegiam a exposição doutrinária tradicional. Quando essas palestras repetem conceitos sem recontextualizá-los ou quando adotam linguagem excessivamente técnica, o público jovem encontra pouco que o atraia.
A revolução comunicacional das últimas décadas mudou radicalmente as expectativas: conteúdos curtos, visuais, interativos e que conectem o saber à prática cotidiana são preferidos. A persistência de modelos antiquados de apresentação — longas exposições, citações eruditas sem mediação prática, pouca interatividade — torna as reuniões monótonas para quem está habituado a informatização da vida e a modelos de aprendizagem mais participativos.
Além disso, há um problema de linguagem: quando o discurso espírita não se propõe a dialogar com questões contemporâneas relevantes — saúde mental, justiça social, cuidados com o meio ambiente, relações afetivas e identidade —, ele corre o risco de soar como comentário acadêmico fora de sintonia com as angústias do público.
A evangelização que não traduz a teoria para práticas e reflexões aplicáveis ao cotidiano perde força persuasiva. A presença nas redes sociais, quando existe, é muitas vezes tímida ou limitada à divulgação de eventos; raramente explora formações em formatos atraentes, narrativas pessoais ou produção de conteúdo que gere identificação genuína.
Ausência de liderança emocional pelo exemplo: o vácuo das grandes referências

Saiba mais a respeito em nosso artigo: Após Chico e Divaldo: o Movimento Espírita diante do Desafio da Liderança Viva
Figuras como Chico Xavier e Divaldo Franco exerceram papel inigualável de liderança pelo exemplo: vidas voltadas à caridade, humildade prática e comunicação acessível. O desencarne dessas referências deixou um vácuo que não tem sido preenchido por lideranças com alcance e simbolismo comparáveis.
Enquanto algumas tradições religiosas conservam modelos de liderança que oferecem referências claras e emotivas, o Espiritismo tem historicamente valorizado a descentralização e a autonomia dos centros. Contudo, a inexistência de referências que combinem autoridade técnica e força inspiradora tem consequências reais: sem exemplos vivos que toquem as emoções e personifiquem os ideais doutrinários, a mensagem corre o risco de ser percebida como mera construção intelectual.
Essa lacuna não quer dizer que o movimento precise de um “salvador único”.
Pelo contrário: a solução mais saudável talvez consista em cultivar um coletivo de lideranças diversas — jovens e experientes, acadêmicos e praticantes, homens e mulheres, de diferentes origens sociais — capazes de inspirar por seus modos de vida e de comunicar com empatia.
A falta atual desse conjunto de referências tem dificultado a atração e retenção de novos adeptos, sobretudo jovens que buscam modelos de conduta autênticos e comprováveis.
Dificuldade para iniciação de novos médiuns: rigidez, tempo e desconexão prática
O desenvolvimento mediúnico no modelo tradicional de muitos centros exige anos de estudo, disciplina e acompanhamento. Essa exigência é legítima e necessária para a formação responsável; contudo, quando o processo é percebido como excessivamente burocrático, cheio de literaturas de difícil leitura e pouco conectado à vivência prática, afasta talentos potenciais.
Jovens que descobrem disfunções mediúnicas ou aptidões intuitivas muitas vezes comparam essa trajetória com alternativas mais imediatas de participação em outras tradições, nas quais a iniciação e a prática estão mais integradas ao cotidiano do grupo.
O problema é também geracional: as novas gerações têm ritmos de vida diferentes, pouco tempo disponível e expectativas de protagonismo. A falta de espaços que permitam que o jovem participe de forma gradual, com responsabilidades reais e supervisão adequada, gera frustração.
Além disso, a centralização de decisões em médiuns mais velhos, sem mecanismos claros de inclusão juvenil em funções administrativas e doutrinárias, propicia um ciclo vicioso de afastamento: menos jovens participando significa menos novas lideranças, o que reforça a percepção de que o movimento está envelhecido.
Rejeição imediata de obras de jovens médiuns: conservadorismo e medo da novidade
Uma cultura de desqualificação imediata de obras produzidas por médiuns jovens e iniciantes tem efeito desestimulador. Quando a comunidade trata novos autores como “mistificados” ou “antidoutrinários” de forma acrítica, cria um ambiente em que o medo de ser rotulado impede a emergência de novas vozes.
Essa atitude é duplamente prejudicial: por um lado, muitas obras realmente carecem de rigor e passam por influências pessoais que merecem orientação; por outro, o fechamento sistemático elimina oportunidades de aprendizado, correção e crescimento dos médiuns emergentes.
Historicamente, o próprio Kardec trabalhou com médiuns jovens e reconheceu a necessidade de analisar as comunicações com razão e método. A atitude atual de rotular sem critério contrapõe-se a esse espírito.
O resultado é perda de oxigenação intelectual e literária: menos inovação, menos diálogo com temas contemporâneos e, consequentemente, menor capacidade de atrair leitores que buscam respostas para questões atuais. É crucial, portanto, que o movimento crie procedimentos claros e pedagógicos para avaliação e desenvolvimento de trabalhos mediúnicos, em vez de depender apenas de mecanismos de rejeição social.
Ainda é possível deixar uma proposta de reflexão para esta seção do texto:
Para casos em que novas ideias buscam agregar aos ensinamentos compilados por Kardec, o movimento espírita costuma basear-se na máxima:
“É melhor repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.”
Erasto, O Livros dos Médiuns, Capítulo XX “Influência Moral do Médium”
Entretanto, esta citação de Erasto, contida em O Livros dos Médiuns, Capítulo XX “Influência Moral do Médium”, na “dissertação de um espírito sobre a influência moral do médium” tem prosseguimento, não sendo uma frase solta e sem contexto.
Seguindo, portanto, além da citação, Erasto nos indica que as verdades rejeitadas serão expostas como autênticas no futuro dentro dos acontecimentos do mundo. Ou seja, podemos entender deste trecho, que Erasto nos orienta a permitir e possibilitar que verdades rejeitadas hoje possam ser acolhidas amanhã. Há, portanto, de se ter postura de abertura mental e atenção aos fatos, não significando que algo rejeitado hoje não possa vir a redimir-se no futuro.
Além disso, Erasto prossegue e deixa claro que a postura e olhares críticos devem incidir mais sobre o comportamento moral do médium, em detrimento da mensagem propriamente dita.
Eis o que nos diz:
“Portanto, se agora um médium, seja ele quem for, se tornar objeto de legítima suspeição, em virtude do seu proceder, dos seus costumes, do seu orgulho e da sua falta de amor e de caridade, repeli, repeli suas comunicações, porque aí estará uma serpente oculta entre as ervas.”
Este trecho é apenas a aplicação do ensinamento de Jesus: “Pelos seus frutos os conhecereis.” (Mateus 7:16)
Portanto, irmãos, examinemos primeiramente as ações morais dos médiuns e não somente as mensagens. Porque, certamente, nos cabe avaliar e aplicar a orientação de Erasto, repelindo dez verdades ao invés de acolher uma única falsa.
Mas será que estamos repelindo tudo o que vemos, promovendo uma total rejeição, indiscriminada e sem validações especializadas?
A “barreira FEB”: autoridade, confiança e problemas de centralização
A Federação Espírita Brasileira (FEB) ocupa um lugar central na história do movimento no país. Ao longo de décadas, estabeleceu-se como referência editorial e doutrinária. Contudo, essa centralidade acabou gerando uma percepção de que a “chancela FEB” é requisito para legitimidade: livros, autores e projetos que não recebem essa marca encontram receio entre muitos adeptos. A existência desse filtro institucional tem prós e contras.
Por um lado, a FEB oferece critérios de qualidade que auxiliam o público leigo a navegar entre a grande oferta de obras mediúnicas; por outro, quando essa posição de autoridade se transforma em barreira ao surgimento de novas vozes, ela pode funcionar como entrave à renovação.
O monopólio editorial histórico e a percepção de controle sobre o mercado doutrinário alimentam críticas de que há um excesso de conservadorismo e até censura velada. Independentemente da intenção, o efeito percebido é cristalizador: editoras e centros que fogem ao circuito tradicional enfrentam dificuldades de circulação e de aceitação.
Esse quadro encoraja um duplo movimento: por um lado, a circulação clandestina de obras fora dos canais oficiais; por outro, a emergência de iniciativas alternativas de distribuição (incluindo modelos digitais e gratuitos) que contestam o modelo vigente. O desafio do movimento é encontrar um equilíbrio entre confiança editorial e abertura, estabelecendo critérios transparentes de avaliação e canais que permitam a legitimação de novas produções sem sucumbir a radicalismos.
O fenômeno da espiritualidade individualizada e a secagem do vínculo institucional
Além das causas internas, há uma tendência sociocultural global que impacta o Espiritismo: a ascensão de uma espiritualidade desvinculada de instituições tradicionais. Muitos jovens declaram-se “espirituais, mas não religiosos” — uma espiritualidade fragmentária, personalizada, selecionada em modalidades diversas.
Essa espiritualidade individualizada absorve muitos que, em outra época, poderiam tornar-se adeptos formais de tradições como o Espiritismo. A vantagem desse movimento para os indivíduos é a flexibilidade; sua consequência para as religiões institucionais é a erosão dos vínculos associativos.
O Espiritismo, cujo método sempre valorizou o estudo coletivo e a prática organizada de caridade, precisa discutir como ampliar sua capacidade de acolher trajetórias espirituais menos institucionalizadas sem renunciar à sua identidade.
Estratégias de relacionamento que acomodem públicos que transitam entre grupos, que valorizem formas híbridas de participação (eventos presenciais, grupos online, formações modulares) e que reconheçam engajamentos pontuais podem ser essenciais para recuperar interlocução com quem hoje prefere não se rotular.
Propostas e caminhos para a renovação
Reconhecidas as limitações, é importante apontar medidas práticas que atuem de forma complementar — algumas de caráter comunicacional, outras institucionais, pedagógicas e espirituais. A primeira dimensão é a comunicação: modernizar a linguagem e os formatos sem diluir os conteúdos essenciais.
Isso envolve produzir materiais didáticos contemporâneos, vídeos curtos, podcasts que conectem teoria e prática, e narrativas que mostrem vidas transformadas pela vivência espírita. As obras clássicas podem e devem ser reinterpretadas em versões que mantenham o rigor conceitual, mas que facilitem a leitura e a aplicação.
No campo editorial e de circulação de obras, a criação de critérios transparentes para avaliação de novos textos pode reduzir o clima de suspeita que silencia jovens autores. Isso não significa baixar padrões, mas instituir comissões técnicas que avaliem, orientem e publiquem com responsabilidade.
Paralelamente, modelos de distribuição digital e gratuita — quando bem-organizados e responsáveis — ampliam acesso e atraem leitores que não teriam recursos para adquirir livros. A experiência de iniciativas que disponibilizam obras sem custo manifesta potencial para democratizar o conhecimento, mas requer mecanismos de curadoria e de orientação para evitar a propagação de materiais de baixa qualidade.
Quanto à vida de centro, a flexibilização das práticas sem perda da seriedade é imperativa. Espaços de formação interativa, oficinas temáticas, projetos sociais que dialoguem com juventudes e grupos de estudo que misturem tradição e linguagem contemporânea podem atrair e reter novos frequentadores. É igualmente importante criar espaços de protagonismo juvenil, com delegação real de responsabilidades administrativas e doutrinárias, para que as novas gerações sintam que sua energia e criatividade têm lugar.
No que tange ao desenvolvimento mediúnico, equilibrar exigência com oportunidade de prática gradual é um ponto-chave. Programas estruturados, com etapas claras, supervisão constante e avaliação técnica, fornecerão segurança às casas e estímulo aos médiuns em formação. Esses programas devem integrar leitura atualizada, vivências práticas e acompanhamento psicológico e espiritual, reconhecendo que formar médiuns é um processo técnico, afetivo e ético.
A liderança, finalmente, deve ser pensada como um conjunto de referenciais distribuídos. Incentivar e valorizar múltiplas vozes — estudiosos, trabalhadores de base, jovens líderes, mulheres e representantes de diversidade étnica — cria um panorama de liderança mais próximo da sociedade contemporânea. Aquele que persiste em buscar apenas referências unificadoras corre o risco de repetir o passado; construir um tecido plural de lideranças permitirá maior resiliência e maior capacidade de diálogo com públicos diversos.
Sobre o compartilhamento gratuito de obras: oportunidades e cuidados
Entre os desafios e esperanças que cercam o movimento espírita contemporâneo, um fenômeno merece atenção especial: o surgimento de iniciativas voltadas à divulgação gratuita de obras mediúnicas. Em um cenário em que o mercado editorial espírita se consolidou como um setor de importância cultural e financeira, projetos que devolvem à palavra espiritual o seu caráter de gratuidade evangélica se destacam como sinais de renovação e de fidelidade ao princípio deixado pelo Cristo:
“Dai gratuitamente o que gratuitamente recebestes.”
Um exemplo notável desse movimento é o trabalho desenvolvido por meio do site mediumfabiobento.com.br, lançado em 2024, embora suas psicografias remontem a registros datados desde 2011. O projeto oferece ao público, de forma totalmente gratuita, o acesso a obras originais, além de traduções para o idioma espanhol, todas disponíveis em formato PDF. As obras abrangem diversos temas de estudo e reflexão espiritual, trazendo mensagens de autores espirituais como Esíades — guia espiritual do médium —, Lucarino, Ramatis, Ermance Dufaux, Joanna de Ângelis, Klaus e Dr. Abraham Arden Brill.
A proposta nasce com uma motivação profundamente evangélica: restaurar a gratuidade como essência da transmissão do ensino espiritual. Conforme exposto na abertura do site, a divulgação, o compartilhamento e até a tradução das obras são livres, desde que respeitada sua integridade e vedada qualquer forma de comercialização. Trata-se, portanto, de um modelo de difusão espiritual que se apoia diretamente nos princípios de O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XXVI, item 7, onde se lê que o dom de Deus não pode ser vendido, sendo a mediunidade instrumento sagrado de serviço e doação.
Esse ideal de partilha desinteressada encontra sustentação espiritual na Carta Pública de Ramatis, datada de 8 de abril de 2014, cuja íntegra está disponível no próprio site. Nessa carta, o espírito esclarece as razões pelas quais buscou um médium sem vínculos com editoras comerciais, defendendo que o mercado editorial espírita se transformou, em parte, em um sistema restritivo, que frequentemente trata os espíritos comunicantes como “marcas”, limitando sua liberdade de expressão e dificultando que novas mensagens cheguem ao público por meio de médiuns não vinculados às grandes casas editoriais.
Ramatis, ao assinar o documento em conjunto com Hermes Trimegisto, denuncia o risco de se criar uma espécie de monopólio espiritual, no qual determinados nomes e ideias se tornam propriedade simbólica de grupos ou instituições.
Em suas palavras,
“Os espíritos são parte da criação Divina, do sonho de Deus. Por isso, estamos aqui para ajudar a todos, sem distinção. Não somos marca ou propriedade exclusiva.”
O ideal verdadeiro seria um movimento de libertação mediúnica, em que médiuns e espíritos pudessem se reencontrar segundo a afinidade moral e o mérito, e não conforme interesses de mercado.
A mensagem de Ramatis ressoa como um chamado à consciência coletiva do movimento espírita: a necessidade de resgatar a autenticidade e a simplicidade original da divulgação doutrinária, sem que a palavra dos Espíritos se veja condicionada a contratos, tiragens ou políticas comerciais. Esse convite não é um ataque ao trabalho das editoras — que, inegavelmente, contribuíram enormemente para a expansão e consolidação do Espiritismo —, mas um apelo ao equilíbrio. O ideal seria que o mercado fosse uma das vias possíveis de divulgação, e não a única.
Projetos como o de Fabio Bento representam, portanto, um sopro de renovação moral e doutrinária, alinhado aos princípios de humildade, desinteresse e universalidade do ensino dos Espíritos. A distribuição gratuita das obras psicografadas não busca competir com as casas editoriais, mas lembrar à comunidade espírita de que o conhecimento espiritual pertence à Humanidade, e não a grupos restritos. O bem, quando verdadeiro, deve circular livremente, multiplicando-se nas mãos que o acolhem e o redistribuem.
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que esse tipo de iniciativa requer discernimento e vigilância. A liberdade de divulgação, se não acompanhada de rigor doutrinário, pode abrir espaço para obras que se afastam do tríplice aspecto do Espiritismo — ciência, filosofia e moral evangélica. O ideal, portanto, é que tais projetos caminhem sustentados pela fidelidade às obras básicas codificadas por Allan Kardec, de modo que a expansão gratuita da literatura espírita não se converta em terreno fértil para desvios ideológicos ou mistificações.
O site mediumfabiobento.com.br, ao manter a integridade das mensagens e ao explicitar sua orientação kardequiana, dá exemplo de como é possível unir fidelidade doutrinária e liberdade de acesso, em perfeita consonância com o pensamento dos bons Espíritos, que trabalham pela educação moral da humanidade e pela difusão universal do bem. É essa combinação de ética, clareza e generosidade que faz desse projeto uma oportunidade luminosa para o Espiritismo reencontrar a sua vocação essencial: servir gratuitamente à verdade e à caridade.
Nesse contexto, o compartilhamento gratuito de obras mediúnicas — quando pautado pela honestidade moral, pela fidelidade doutrinária e pelo desejo sincero de instruir e consolar — não apenas revigora o movimento espírita, mas também rompe barreiras culturais e linguísticas, permitindo que as mensagens do plano espiritual alcancem corações em diversos países, sem restrições de poder aquisitivo ou fronteiras comerciais. Ao disponibilizar inclusive traduções em espanhol, o projeto de Fabio Bento mostra que a caridade intelectual não conhece limites geográficos, e que o idioma do amor é universal.
Assim, em tempos de retração do número de adeptos declarados, o Espiritismo reencontra, em gestos como esse, um caminho de autenticidade e esperança. O futuro da Doutrina poderá florescer novamente quando cada trabalhador, cada médium e cada instituição compreenderem que a força do Espiritismo não está em sua estrutura organizacional, mas na pureza de seus propósitos e na liberdade de sua luz.
Conclusão: um chamado à renovação com responsabilidade
A diminuição do número de adeptos do Espiritismo, conforme observada nos últimos censos, é sintoma e oportunidade. Ela denuncia fragilidades comunicacionais, institucionais e pedagógicas, mas também abre espaço para reflexão renovadora.
O movimento espírita tem em sua história elementos de flexibilidade, razão e caridade que o habilitam a se reinventar. Para tanto, é indispensável adotar mudanças concretas: atualizar linguagem e meios de comunicação, criar processos claros de avaliação e formação, abrir espaços de protagonismo juvenil, acolher pluralidades e garantir que a disseminação do conhecimento seja responsável.
Renovar não significa renunciar à essência doutrinária; significa, antes, encontrar meios contemporâneos e honestos de tornar essa essência compreensível, vivível e irresistível na prática cotidiana. O desafio coletivo é grande, mas a tarefa é possível. Exige coragem institucional e humildade cultural: coragem para revisar modelos que já não funcionam, e humildade para ouvir jovens, compreender suas inquietações e dar-lhes responsabilidades reais. É ao mesmo tempo uma tarefa doutrinária e pastoral, que conjuga estudo, trabalho de base e criatividade comunicativa.
Que a reflexão sobre as causas e as soluções aqui apresentadas inspire o diálogo nas casas, federações e entre os pesquisadores espíritas. O futuro do movimento depende menos de saudosismos e mais da capacidade de agir com sensibilidade, rigor e generosidade. Se o Espiritismo pretende continuar relevante e atuante nas próximas décadas, precisa ser capaz de tocar corações e mentes contemporâneas, oferecendo caminhos para que a caridade, o estudo e a reforma íntima floresçam em novas formas, sem perder a substância. O momento é de responsabilidade e oportunidade: quem ama a doutrina deve estar disposto a revisitar práticas, acolher o novo com critério e preservar o que é eterno.
Reflexões claras num discurso coerente onde a possibilidade do novo é trazida como soma e não substituição.
Estarmos abertos a tais reflexões não leva a substituição do passado, mas sim a uma renovação e implicação num discurso renovado. Boa leitura e boas reflexões.
Luiz Paulo Farash
Obrigado pela leitura, Luiz.
De fato, a proposta do artigo é provocar reflexão.
Ao passo que entendê-lo como estímulo à substituição de pessoas ou valores, seria um contrassenso aos ideais de liberdade espírita.
Amei
Gratidão pela leitura!