Dar-se-á àquele que tem
Dar-se-á àquele que tem — Ensinamentos do Evangelho

No item 15 do capítulo XVIII de O Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulado “Dar-se-á àquele que tem”, encontramos um ensinamento que, pela concisão de sua enunciação, frequentemente provoca perplexidade: “Dá-se ao que já tem e tira-se ao que não tem.” À primeira leitura, para mentes acostumadas à lógica mercantil e às aparências do mundo, essa sentença soa injusta, quase cruel. Todavia, a explicação que acompanha a frase — transmitida por um Espírito amigo em Bordéus, em 1862 — revela que essa expressão é uma antítese figurada e convida o leitor a transpor a superficialidade das palavras até o âmago das leis morais que regem o progresso dos seres.
Ao examinarmos esse trecho com atenção, descobrimos que ele não descreve um Deus vingativo nem valida privilégios imutáveis; descreve uma dinâmica espiritual em que a dádiva precisa ser cultivada para frutificar e em que a negligência seus frutos perde naturalmente aquilo que lhe foi confiado. A fórmula “dar-se-á àquele que tem” torna-se, então, um princípio pedagógico: o auxílio divino coopera com a boa vontade e com o trabalho íntimo; não substitui o esforço humano. Esta é a chave interpretativa que orienta todo o desenvolvimento do presente artigo, cujo propósito é esmiuçar com profundidade as várias camadas desse ensinamento, oferecendo leitura que subsidie reflexão, renovação íntima e prática cotidiana do Evangelho.
Compreendendo a figura: “ter” além da posse material
O erro inicial de interpretações banais repousa em considerar o “ter” como sinônimo de posse material. O texto esclarece que o que se recebe e que, se não cultivado, se perde, refere-se principalmente às aquisições morais e espirituais: o entendimento da palavra divina, a predisposição para o bem, a fé que age, os hábitos elevados que se instalam pelo exercício constante. Assim, o “ter” evangélico é antes condição do espírito do que acúmulo de bens. É sensibilidade para o que é reto, força de vontade para modificar-se, disposição para praticar a caridade e perseverança no bem.
Quando o Espírito usa a imagem do campo legado pelo pai, a metáfora fala claramente dessa diferença: é legítimo receber uma herança — seja de talentos, sensibilidades ou orientações — mas se o herdeiro não labuta, a herança torna-se improdutiva. A lição é pedagógica: a dádiva divina presume liberdade e responsabilidade. O divino não confere uma benesse que torne o ser passivo; confere potencialidades que exigem cooperação. Portanto, interpretar “ter” como mera vantagem externa empobrece o significado profundo do texto e nos desvia do princípio da cooperação entre graça e esforço.
A lei da sintonia e a atração das graças
O trecho sublinha que os “esforços que tendem para o bem atraem as graças do Senhor; são um ímã que chama a si o que é progressivamente melhor”. Aqui se delineia com nitidez a lei da sintonia: pensamentos, sentimentos e atos apegados ao bem estabelecem afinidade com planos mais elevados. Ação e interioridade compõem uma única realidade dinâmica: o movimento para melhorar cria condições para que o auxílio divino se intensifique. Importa notar que o auxílio não é automático de forma a anular a liberdade; é cooperativo, alimentado pela harmonia entre a vontade humana e as leis divinas.
Esta lei opera tanto no campo individual quanto no coletivo. Uma pessoa que cultiva a paciência, a humildade e a caridade tende a atrair circunstâncias, inspirações e amigos que favoreçam seu aperfeiçoamento. Do mesmo modo, um grupo que pratica o bem atrai fluidos de ordem superior. Assim, “dar-se-á àquele que tem” não sugere favoritismo arbitrário, mas descreve uma causalidade moral: o merecimento se constitui a partir do exercício contínuo do bem.
A metáfora agrícola: arar, semear, regar
A imagem do campo é rica em ensinamentos práticos. Receber o campo é receber um espaço de responsabilidade. Arar é a preparação interna que nos permite separar solos inóspitos — pensamentos viciados, paixões desordenadas — da terra fértil da vontade reta. Semear é a decisão consciente de plantar hábitos virtuosos, leituras edificantes e práticas de auxílio ao próximo. Regar, por sua vez, significa nutrir essas sementes com amor e caridade, isto é, com sentimento que dá consistência às obras.
A parábola não se esgota em metáforas bonitas; ela aponta procedimentos cotidianos. O trabalho de reforma íntima exige disciplina: exame de consciência, correção de faltas, persistente cultivo de atos normais (pequenos gestos de bondade, controle dos impulsos, estudo sincero). A sequência arar–semear–regar indica também etapas: sem preparação profunda, a semente fica à mercê da erva daninha; sem semeadura correta, a coisa não germina; sem rega, o que nasce seca. O aprendizado é claro: a evolução não é fruto do acaso, mas de trabalho intencional.
A ideia de perda: quem tira, realmente?
Quando o Espírito afirma que “tira-se ao que não tem, ou tem pouco”, ele imediatamente corrige a interpretação equivocada: não é Deus quem subtrai os dons. Há uma ênfase crucial em que a perda decorre do próprio descuido do indivíduo. Assim, as aparentes injustiças são explicadas por negligência moral. O autor espiritual, com precisão pedagógica, lembra que não cabe acusar aquele que tudo preparou — o Pai — quando a semente é deixada fenecer. A perda é consequência natural do desuso e do abandono.
Esta ideia tem profundas implicações para a responsabilidade pessoal: em vez de procurar um culpado externo, o indivíduo é convidado a examinar sua conduta. Se as potencialidades foram desprezadas, o remédio não é o lamento, mas o arrependimento ativo e o trabalho renovador. A crítica a Deus ou ao destino é, portanto, uma fuga; reconhecer a própria parcela de responsabilidade é condição para reerguer-se. Assim, a justiça divina se apresenta como educativa, não punitiva.
Arrependimento prático: mais que sentimento, mudança
O trecho oferece um caminho concreto para a recuperação: arrependimento e trabalho. O arrependimento, na perspectiva espírita, não é meramente um pesar sentimental; é uma tomada de decisão que se traduz em ações. Arrepender-se implica identificar as causas do mal, eliminar atitudes contrárias ao bem e adotar hábitos renovados. A obra de reforma não se limita a palavras — exige atitudes constantes: mudança de hábitos, reordenação de pensamentos, práticas de caridade e disciplina moral.
O Espírito aconselha: “arroteie o solo ingrato com o esforço de sua vontade; lavre-o fundo com auxílio do arrependimento e da esperança; lance nele, confiante, a semente que haja separado, por boa, dentre as más; regue-o com o seu amor e a sua caridade.” Note-se que arrependimento e esperança caminham juntos: o reconhecimento do erro abre espaço para a expectativa transformadora; a esperança mantém a perseverança. Sem ela, o trabalho tende a minguar diante dos reveses. A dinâmica entre arrependimento e esperança é, portanto, o motor da restituição.
A responsabilidade na mediunidade e nos dons espirituais
Uma aplicação imediata e urgente do ensinamento é o trato com a mediunidade. O médium que recebe faculdades tem diante de si um campo que requer preparo, disciplina e ética. A mediunidade pode ser grande bênção ou fonte de ruína moral, conforme seja cultivada ou abandonada. A imagem do herdeiro que não prepara o campo fala com nitidez ao médium: sem estudo, sem orientação moral, sem humildade e sem serviço, a faculdade pode gerar orgulho, ilusão e prejuízo a si e a outros.
Por outro lado, o médium humilde, estudioso e dedicado ao bem recebe mais de Deus porque suas responsabilidades são maiores; ele se encontra em condições de multiplicar o bem. Dessa maneira, “dar-se-á àquele que tem” traduz-se em maior responsabilidade e maior amplitude de serviço para os que demonstram aproveitamento das oportunidades espirituais. O centro espírita, por sua vez, que educa, supervisiona e orienta, pode tornar-se terreno fértil capaz de produzir frutos de caridade.
Aplicação comunitária: centros e grupos como campos coletivos
O princípio extrapola a esfera particular e alcança a dimensão coletiva. Um grupo que estuda, pratica a caridade e se organiza para o serviço atrai influências benéficas. O “ter” coletivo manifesta-se na cultura do grupo: frequência, disciplina, coerência entre palavra e ato. Centros que cultivam o Evangelho na prática recriam ambientes propícios para que iniciantes encontrem estímulo a trabalhar e que médiuns sejam acompanhados, evitando deslizes.
A responsabilidade institucional é, portanto, relevante. O centro espírita que se contenta com formalidades e negligencia a aplicação prática das lições do Cristo está deixando o solo comunitário cobrir-se de ervas. Ao contrário, um centro que promove tarefas concretas — atendimento ao necessitado, estudo orientado, grupos de serviço — atua como arado e rega, preparando terreno que frutificará. Assim, a pedagogia do “dar-se-á àquele que tem” se aplica tanto ao indivíduo quanto à obra comum.
A natureza progressiva da graça
Uma ideia central do trecho é a progressividade da graça: “são um ímã que chama a si o que é progressivamente melhor, as graças copiosas que vos fazem fortes para galgar a montanha santa.” Esta progressividade indica que a evolução não é instantânea, mas acumulativa. Pequenos avanços atraem mais auxílio, tanto no que diz respeito a inspirações quanto na ocorrência de oportunidades práticas. A experiência da transformação é, portanto, construção paulatina que produz plasticidade moral.
Esse princípio traz consolo e pungência: consolo, porque ninguém é excluído da possibilidade de recomeçar; pungência, porque as oportunidades são estreitadas quando o ser se acomoda. A graça, como resposta à boa vontade, não viola a liberdade, mas a premia com cooperação crescente. A parábola do grão que produz cem e outro mil ilustra claramente a multiplicação que advém de ações perseverantes.
Discernimento e seleção das sementes
O texto recomenda escolher “a semente que haja separado, por boa, dentre as más”. Discernimento, assim, surge como habilidade moral imprescindível. Saber distinguir entre opções, escolher o que contribuirá ao bem e evitar o que é danoso exige formação da consciência, estudo e humildade. Discernir não é apenas conhecer teorias; é capacidade prática de avaliar situações e agir com prudência.
Desenvolver discernimento implica abertura à orientação superior, análise crítica dos próprios motivos e recuperação de experiências que ensinem. O erro faz parte da aprendizagem, mas a repetição das mesmas falhas indica ausência de reflexão. Por isso, o cultivo do discernimento é trabalho diário, condição para que o campo produza frutos saudáveis.
Fé raciocinada e ação coerente
A passagem dirigida aos “homens cegos e surdos” que devem abrir as inteligências e os corações ressalta a necessidade de uma fé que dialoga com a razão e com a prática. A fé espírita não é fideísmo acrítico; é adesão que pede entendimento e aplicação. “Vede pelo vosso espírito; ouvi pela vossa alma” são convites à vivência interior que complementa a compreensão intelectual.
A fé raciocinada estimula a responsabilidade: ao entender as leis morais, o indivíduo se sente convocado a agir. Não há espaço para fatalismos. A lógica do Evangelho é ética e dinâmica: crer implica fazer. Nesse sentido, a fé sem obras não produz a atração de graças descrita no trecho, porque o que atrai não é a fórmula, mas a transformação real.
Esperança como força de sustentação
A esperança aparece no texto como motor da persistência: “lavre-o fundo com auxílio do arrependimento e da esperança”. A esperança, quando aliada ao arrependimento e ao trabalho, transforma o labor em estrada viável. Diferentemente de otimismo superficial, a esperança espírita é sustentada por leis justas e pela confiança de que o esforço sincero encontra resposta. Essa esperança é disciplinada e prática; ela anima, não ilude.
Manter a esperança diante de retrocessos exige humildade e paciência. Alguns trabalhos são longos, e a colheita pode demorar. A esperança nutre a perseverança, fazendo do obreiro alguém que não desiste por desânimo passageiro, mas que se firma no objetivo de melhoria contínua.
Amor e caridade como essência da rega
O texto sublinha que as sementes devem ser “regadas com o seu amor e a sua caridade”. Amor e caridade são as forças vivificantes do processo. O amor orienta a intenção, enquanto a caridade manifesta-se nas ações concretas que beneficiam o outro. Sem essa conjugação, o trabalho é mecânico; com ela, transforma-se em serviço transmutador. O evangelho de Jesus é, em sua essência, evangelho do amor prático.
Amar implica reconhecer no outro um semelhante digno de auxílio. Praticar caridade não se restringe a gestos grandiosos; trata-se de atos corriqueiros de atenção, respeito e socorro. O amor que rega as sementes é composto de paciência, perdão, acolhida e generosidade. Ele é o solo onde as ações virtuosas se enraízam.
Ressignificação da noção de mérito
A maior dificuldade humana é aceitar que o mérito não é recompensa externa arbitrária, mas consequência de escolhas que afinam o espírito com as leis divinas. O trecho nos liberta do mito das dádivas gratuitamente distribuídas: não se trata de sorte, e sim de resposta natural a alinhamento entre vontade e lei. Essa ressignificação torna a caminhada mais transparente: não há injustiça que precise ser desculpada por acusações a Deus; há uma pedagogia que nos chama à ação.
Ao abraçar essa visão, o trabalhador espírita assume protagonismo: ele é responsável por suas perdas e por suas vitórias, mas também pode contar com a benevolência divina quando sua vontade se converte em obra. Mistura-se a justiça com a misericórdia, e, nesse entrelaçamento, encontra-se a verdadeira dinâmica do progresso.
Conclusão
A sentença “Dá-se ao que já tem e tira-se ao que não tem”, quando desvelada por meio da explicação dos Espíritos, revela-se como uma das mais claras exortações à responsabilidade e ao trabalho íntimo que o Evangelho nos propõe. Longe de ser um enigma de injustiça, ela é um convite a reconhecer que recebemos o que nos é necessário para a evolução, mas que esse recebimento pressupõe cultivo, esforço e amor. Deus não subtrai; o ser humano, por negligência, perde aquilo que não soube aproveitar.
A mensagem contida no texto de 1862 convida-nos a abandonar a passividade do que espera bênçãos sem trabalhar por elas, substituindo a lamentação por ação transformadora. Arar o coração, arrancar a cizânia, semear o que é bom e regar com caridade constituem os passos práticos dessa reforma íntima. A fé raciocinada, o arrependimento que se traduz em obra, a esperança perseverante e o discernimento atuam como instrumentos dessa obra.
Para o espírita comprometido com o ideal do Evangelho, a lição é dupla: pessoalmente, esforçar-se em melhorar sempre; coletivamente, contribuir para que o ambiente em que vive torne-se terreno fértil para outros. Nos campos da mediunidade, da educação moral e do serviço fraterno, a pedagogia do “dar-se-á àquele que tem” é, ao mesmo tempo, advertência e estímulo.
Que esta compreensão nos leve a agir com coragem e humildade, cientes de que nenhum esforço sincero se perde e que a misericórdia divina coopera com os que, de boa vontade, se dispõem a trabalhar. Assim, ao lavrarmos nossos corações e praticarmos a caridade diária, permitimos que a promessa do Evangelho se cumpra em nossas vidas: o grão que, bem cultivado, produzirá cem e outro mil.