Bem-aventurados os que têm fechados os olhos
Bem-aventurados os que têm fechados os olhos: Uma Análise Espírita à Luz da Mensagem de Vianney, cura d’Ars

A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec sob a orientação dos Espíritos superiores, nos oferece não apenas consolo diante das dores humanas, mas também instrumentos para compreender os sofrimentos sob o prisma da justiça divina e da evolução espiritual. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo VIII, encontramos instruções profundas sobre a pureza de coração e, mais especificamente, no item 20, uma mensagem singular transmitida pelo Espírito Vianney, cura d’Ars, que trata da cegueira física como expressão de uma bem-aventurança espiritual.
O texto, embora dirigido inicialmente a uma mulher cega e sofredora, alcança a todos nós como um hino de resignação, confiança e reinterpretação das aflições humanas à luz da vida imortal. O aparente paradoxo que dá título ao trecho — “Bem-aventurados os que têm fechados os olhos” — remete-nos à inversão de valores proposta por Jesus no Sermão do Monte, quando ele eleva os últimos ao primeiro lugar, e os sofredores ao plano da bem-aventurança.
Este artigo tem como objetivo aprofundar, de forma minuciosa, os aspectos doutrinários, morais e espirituais presentes nesta instrução, analisando seus significados ocultos e suas implicações na vida prática do espírita sincero.
A Cegueira como Expiação e Caminho para a Luz
O primeiro aspecto que salta aos olhos é a forma como o Espírito Vianney apresenta a cegueira não como punição, mas como expiação misericordiosa. Logo no início da comunicação, ele afirma:
“Contudo, uma vez que aqui me acho, numa assembleia onde principalmente se trata de estudos, dir-vos-ei que os que são privados da vista deveriam considerar-se os bem-aventurados da expiação.”
Essa expressão – bem-aventurados da expiação – é de extrema riqueza. Na linguagem evangélica, os bem-aventurados são aqueles que, apesar das circunstâncias dolorosas, encontram no sofrimento terreno o germinar de virtudes eternas. A cegueira, portanto, longe de ser um castigo aleatório ou sem propósito, é compreendida como instrumento de elevação, freio à queda, preservação da alma.
E por que a visão seria um obstáculo à pureza? Porque os olhos, enquanto janelas da alma, também são portais para as ilusões do mundo. A sensualidade, o orgulho, a cobiça, a inveja — todas essas paixões podem ser alimentadas pelos estímulos visuais. Assim, para espíritos que abusaram da visão em vidas pretéritas, a cegueira pode ser um recurso educativo, uma forma de redirecionamento da consciência para o mundo interior, para os valores do Espírito.
“Se teu olho te escandaliza, arranca-o”
A referência feita por Vianney às palavras do Cristo é profundamente simbólica:
“Lembrai-vos de que o Cristo disse convir que arrancásseis o vosso olho se fosse mau, e que mais valeria lançá-lo ao fogo, do que deixar se tornasse causa da vossa condenação.”
Aqui, o Espírito não está fazendo apologia à mutilação física, evidentemente, mas sim ao combate firme contra as más inclinações. A metáfora usada por Jesus e resgatada por Vianney representa o esforço moral necessário para renunciar aos sentidos e atitudes que conduzem à queda espiritual.
Na prática, arrancar o “olho mau” é eliminar o que nos arrasta ao erro: seja uma tendência, um hábito, uma relação ou mesmo uma forma de ver o mundo. No caso da visão física, quando ela foi, em existências anteriores, instrumento de perdição, a Providência pode permitir que o Espírito retorne ao corpo físico sem essa faculdade — não por crueldade, mas por amor pedagógico.
Assim, a cegueira torna-se, nesse contexto, uma espécie de proteção espiritual, tal como a reencarnação em corpos enfermos pode ser uma forma de resgate e aprendizado. Essa visão transcendente muda por completo o entendimento materialista da dor e da deficiência.
A Luz Interior e a Vida da Alma
Um dos pontos mais elevados da mensagem é a afirmação de que o cego pode ver mais do que nós que possuímos a visão física:
“Podem viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que vós que tendes límpida a visão!…”
Vianney aqui nos convida a contemplar uma nova forma de visão — aquela que se realiza pelo Espírito, que percebe pela sensibilidade interior, pela intuição, pelo sentimento. A cegueira, nesse sentido, não é ausência de luz, mas redirecionamento da luz para os domínios da alma.
Há cegos que “veem” com o coração, que percebem a presença dos bons Espíritos, que intuem verdades, que desenvolvem uma vida espiritual intensa, nutrida pela oração, pela meditação e pela renúncia.
Essa visão interior é superior à sensorial, pois não se limita às aparências, mas penetra o sentido moral dos acontecimentos. É o que explica por que tantos deficientes visuais desenvolveram obras de fé, poesia, filosofia e serviço ao próximo. A ausência da luz física não os impediu de acenderem luzes no mundo.
O Consolo da Fé e a Submissão à Vontade Divina
A linguagem afetuosa com que o Espírito se dirige à mulher cega demonstra a delicadeza da caridade espiritual:
“Espera e tem ânimo! Se eu te dissesse: Minha filha, teus olhos vão abrir-se, quão jubilosa te sentirias! Mas, quem sabe se esse júbilo não ocasionaria a tua perda!”
Essa advertência é muito séria. Quantas vezes pedimos curas, mudanças e bênçãos, sem compreender que essas concessões, embora legítimas aos olhos humanos, poderiam significar retrocesso espiritual para nossa alma?
A cura que se deseja no plano físico nem sempre é a cura que a alma precisa. O Espírito superior sabe disso. Por isso, ao invés de prometer a visão, ele convida à resignação, à oração e ao esforço contínuo.
A confiança em Deus e a paciência ativa são virtudes que só se desenvolvem nas situações em que o consolo terreno parece ausente. Mas é exatamente nesses momentos que o amparo divino se revela com maior profundidade. A fé, nesse caso, não é crença cega, mas visão clara da justiça e do amor de Deus, mesmo sob a aparência do sofrimento.
A Cegueira como Testemunho e Missão
Aquele que traz consigo uma limitação, como a cegueira, pode não apenas resgatar débitos pretéritos, mas também testemunhar fé e esperança aos outros. O Espírito afirma:
“Oh! bem-aventurado o cego que quer viver com Deus. Mais ditoso do que vós que aqui estais, ele sente a felicidade, toca-a, vê as almas…”
Trata-se de um convite à reavaliação de nossos conceitos sobre “normalidade” e “infelicidade”. Nem todo aquele que vê é feliz; nem todo aquele que não vê é infeliz. A vida espiritual transcende os sentidos físicos, e o sofrimento pode ser não apenas suportado, mas sublimado e ofertado como missão.
O cego, neste sentido, é visto como modelo de fé, exemplo de elevação, alma provada e escolhida. E o que pode parecer desgraça aos olhos humanos, é, aos olhos do Espírito, glória silenciosa e luminosa.
A Condição da Alma Antes do Corpo
Um dos trechos mais profundos da mensagem encontra-se na oração que o Espírito sugere:
“Meu Pai, cura-me, mas faze que minha alma enferma se cure antes que o meu corpo; que a minha carne seja castigada, se necessário, para que minha alma se eleve ao teu seio…”
Aqui, a ordem das prioridades está invertida em relação à lógica terrena. O corpo não é o centro das atenções; é o instrumento temporário da alma. Se há enfermidade, que ela seja enfrentada, mas que jamais se perca de vista o objetivo maior: a cura espiritual, o resgate moral, o crescimento interior.
Esta é a verdadeira cura espírita — aquela que transforma o ser, não apenas o alivia. A mensagem não desconsidera a dor, nem a minimiza. Mas lhe atribui valor educativo e salutar.
A Luz nas Trevas: Paradoxo Iluminador
O Espírito encerra com uma frase paradoxal e profundamente espiritual:
“A cegueira dos olhos é, muitas vezes, a verdadeira luz do coração, ao passo que a vista é, com frequência, o anjo tenebroso que conduz à morte.”
Essa antítese é uma das chaves da mensagem. A luz física pode, sim, cegar espiritualmente, se nos tornamos escravos das ilusões e dos prazeres mundanos. Já a cegueira física pode abrir caminho à humildade, à prece, à vida interior, e tornar-se luz verdadeira — luz que não se apaga com a morte do corpo.
Tratado Espiritual
A mensagem de Vianney, o cura d’Ars, é um tratado espiritual sobre a dor, a fé, a resignação e o verdadeiro significado da visão. Em poucas palavras, ele nos conduz a uma profunda revisão de valores e nos oferece uma chave para compreender os sofrimentos sob a ótica da justiça divina.
A cegueira física, que tantos consideram uma desgraça, é apresentada como oportunidade de elevação, libertação dos escândalos do mundo, e mergulho na vida espiritual. Aqueles que sofrem dessa limitação são convidados a compreender seu papel como almas em resgate e em missão.
Cabe a nós, espíritas e aprendizes do Cristo, não apenas compreender intelectualmente essas verdades, mas incorporá-las ao nosso cotidiano: valorizando a visão interior, sendo gratos pelos sentidos que possuímos, respeitando aqueles que vivem com limitações, e confiando sempre na providência divina que nos conduz, mesmo quando nossos olhos materiais não conseguem ver o caminho.
Sejamos, pois, também nós — ainda que com os olhos abertos — bem-aventurados pela luz do coração, pela vigilância sobre nossos sentidos, e pelo compromisso com a nossa reforma íntima.
Bem-aventurados os que têm fechados os olhos, pois Deus lhes abriu a alma.
Item 21: Nota posterior ao texto original:
Quando uma aflição não é consequência dos atos da vida presente, deve-se-lhe buscar a causa numa vida anterior. Tudo aquilo a que se dá o nome de caprichos da sorte mais não é do que efeito da justiça de Deus, que não inflige punições arbitrárias, pois quer que a pena esteja sempre em correlação com a falta. Se, por sua bondade, lançou um véu sobre os nossos atos passados, por outro lado nos aponta o caminho, dizendo: “Quem matou à espada, pela espada perecerá”, palavras que se podem traduzir assim: “A criatura é sempre punida por aquilo em que pecou.” Se, portanto, alguém sofre o tormento da perda da vista, é que esta lhe foi causa de queda. Talvez tenha sido a de que outro perdesse a vista; de que alguém haja perdido a vista em conseqüência do excesso de trabalho que aquele lhe impôs, ou de maus-tratos, de falta de cuidados, etc. Nesse caso, passa ele pela pena de talião. É possível que ele próprio, tomado de arrependimento, haja escolhido essa expiação, aplicando a si estas palavras de Jesus: “Se o teu olho for motivo de escândalo, arranca-o.”